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A tão aguardada lista dos melhores livros desgraçadamente não lidos de 2023

À beira de 2024, fiz uma lista das pendências de 2023. Dois dedos de prosa com o Bei de Túnis, três palavrinhas com as quatro sobreviventes de Canudos e cinco voltas ao mundo em seis dias. Eis o começo da lista. Mas nada se compara ao espanto que eu mesmo sofri diante da lista dos livros que deixei de ler, embora a oportunidade me tenha sido oferecida por três livreiros antigos de Patos, Sousa e Piancó. Relacionar os livros talvez seja uma experiência melhor que lê-los, assim como praticar os pecados capitais ou transgredir os Dez Mandamentos é mais prazeroso que ler e reler o sacro elenco. Assim sendo, em 2023, deixei de ler: 1. Um manuscrito andaluz do século XII, contendo a tradução para o árabe do livro de Aristóteles sobre a Comédia, acrescido de comentário profético sobre certo palhaço de bigode e bengala. 2. A autobiografia autêntica de Zé Limeira, editada pelos irmãos Garnier no Rio de Janeiro em 1789, com apresentação de Bráulio Tavares e tradução para o russo medieval por Ast
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Qual é o seu signo?

Sagitário, respondo, quando perguntam, sem convicção alguma. Creio tanto nos signos quanto em Javé ou Brás Cubas. São criações que os humanos usamos para lidar com os abismos da consciência. Quando eu nasci, fazia 145 anos terrestres que a estrela mais brilhante de Sagitário havia emitido a luz que, no inverno anterior, meus pais poderiam ter avistado à noite, imaginando meu nome. Quando chegar à Terra a luz que de lá saiu no instante em que dr. Everaldo me arrancou à fórceps do ventre, não haverá mais qualquer lembrança dos anos que eu terei vivido neste girador. E as estrelas de Sagitário, ou de qualquer constelação, explodem todas tão distantes umas das outras e a diferentes lonjuras de nós, que só a perspectiva insuficiente dos antigos explica esta ilusão. A ilusão de que o universo, sendo dotado de uma razão cósmica, conspira em favor ou desfavor de exatamente uma espécie, dentre milhões, habitante de um planeta banhado, de perto, por uma anã. Mas aí me pego pensando em um detalhe

O sonho de Alberto

Onze anos atrás, no Rio de Janeiro, avistei no mesmo dia Alberto da Costa e Silva, Evanildo Bechara e Lêdo Ivo. Até hoje, tento entender, desse triplo encontro, o detalhe do que não ocorreu. Tomei coragem e me aproximei de Evanildo Bechara e Lêdo Ivo. Com um, falei sobre Anézio Leão, o gramático campinense de quem ele tinha vago conhecimento, mas não a rara gramática. O outro, quando abordado, foi logo dizendo: "um jovem querendo falar com um velho poeta só pode ser outro poeta!" E soltou aquela risada do menino maroto que queria ser nosso Rimbaud. Diante de Alberto da Costa e Silva, porém, paralisei. O velho diplomata foi gentil com meu silêncio. Parou e me estendeu os olhos da escuta, aguardando as palavras que, bailando na ponta da língua, recuavam, suadas e coradas, para a coxia. Entramos no elevador, descemos juntos quatro ou cinco andares. Eu empurrava as palavras para o palco; elas tropeçavam, esperneavam e não iam. Ele quase se oferecia para traduzir a luta. O térreo

Sobre cachorros e cães

Tempos atrás, ia voltando a pé da padaria quando, a cinco passos do portão, vinha passando uma senhora com o cachorrinho de mimação. A mulher notou que me detive, paralisado de medo. Criança de braço, fui atacado com minha mãe por um vira-lata. Dos 3 aos 10 anos, estudei em uma escola que tinha dois cachorros brabos como auxiliares de disciplina da professora linha-dura. Tenho mais trauma de cachorro que um judeu, em 1945, de campo de concentração. Para mim, são forças cruas da natureza, sem medo de infâmia ou polícia, sem compromisso com a civilização. Mas a mulher não me deixou explicar. Dedo em riste, passou-me sermão sobre a vergonha de temer um serzinho inofensivo e saiu chutando o vento contra mim, transformado em especista, canalha. Desde então, dei para espiar essa tendência de os cachorros andarem aí pelas ruas como gente e, nadando na contra-corrente, termino vendo dois ou três tubarões por trás das sardinhas. Um exemplo. Sempre que um criança novinha se desgarra do responsáv

Entre sonares e arpões

Um piano e uma biblioteca. Eis o desafio que lanço para corretores de todos os gêneros e não sei se compreendem mal, ou apenas fazem ouvidos de mercador diante de um ruído estranho. Ah, sim, como não! Aqui você pode colocar um painel, duas prateleiras de livros e um espaço logo abaixo para o piano. Mas veja, o edifício tem piscina, churrasqueira e sauna a vapor! E este ainda não é o problema. O problema, alguém pode dizer, é que o Sul descobriu João Pessoa. E sempre há um rico paulista disposto a pagar 500 mil numa quitenete, gourmetizada com o nome de loft para aluguel. Então, se você tem piano, livros e amigos para receber, faça o favor de ser milionário. Ou abra mão desses luxos e aceite que, a partir de agora, a casa é mero lugar de passagem pra dormir e ver TV. O terreno para um casa não é opção. Custa um olho da cara e o outro, não se pode perder para construir a casa em troca de dois buracos ao lado do nariz, para espanto da vizinhança melindrosa. O problema, digo eu, é maior. A

O coração de Pedro

Por esses dias, andei me lembrando de outros, que logo mais completarão 25 anos. Era setembro ou outubro de 97. Eram os dias do centenário de morte de Santa Teresinha do Menino Jesus. Menino de igreja, devoto da santa, fiquei em festa ao saber que as relíquias dela viriam ao Brasil e viajariam em peregrinação mística por várias dioceses do país, inclusive a de Campina Grande. Foi então que as freiras das Clarissas me chamaram. O mosteiro havia sido escolhido para acolher a urna com os ossos sacros e elas precisavam montar uma escala de homens para fazer a guarda. E assim se fez. Qualquer pessoa que queira compreender o catolicismo romano, em suas dimensões psíquicas mais íntimas, precisa prestar - boa e crítica - atenção ao que vou contar. Chegou o dia. Quando veio minha vez de fazer guarda, fui tomado de uma emoção que até hoje sou incapaz de descrever. Estar ali, diante daqueles ossos, reduzia-me a culpa e aumentava a virtude. Era como se a mera visão da urna tivesse o poder mágico d

Pernas, bem vos quero

Semana que vem, minha segunda lembrança mais antiga completa 36 anos: era o velório de vovô Velhinho, meu bisavô, e eu, na pontinha dos pés, apoiava as mãozinhas no caixão pra ver o morto. Aí vinha algum adulto e me afastava do espetáculo fúnebre, dizendo que ali não era lugar pra criança. Mas ali era a sala da casa dos meus avós e, no meio dela, haviam colocado uma cama florida. Dentro da cama, dormia o Velhinho que, não bastasse a lembrança macabra, veio a ocupar outra: a primeira mais antiga que carrego - a dele vivo, sentado na cama, sem um perna, fitando o vazio. Não sem razão, vovô Velhinho inaugurou minhas inclinações filosóficas. Criança, eu chorava pensando que todos estávamos fadados à mesma e sufocante sina daquele homem: a vida eterna. Mas não é de metafísica que quero falar hoje com vocês. É de física mesmo, porque do lado de cá nascemos, crescemos, frutificamos, morremos. E é do lado de cá que ficam as pernas e os pirulitos. Imaginem vocês que recebi o diagnóstico de pré-